quarta-feira, 19 de agosto de 2009

LEMBRANÇAS DA INFÂNCIA






O apito da Maria-Fumaça anuncia sua chegada na estação. A molecada sobe correndo pela rua Dr. Victor Ferreira para ver o trem . Na plataforma, Dona Julieta anuncia:
- Olha o café fresquinho, biscoito de polvilho torradinho. Vamos, freguês, aproveite.
Seu Barbosa vende, no guichê, os últimos bilhetes para o noturno que sobe em direção a Manhumirim.
O maquinista puxa a corda e o apito toca mais uma vez. A fumaça sai pela chaminé mas, como o ar está meio parado, ela não sobe e chega até a sufocar os namorados que passeiam pela calçada de lajotas de pedra.
Carregadores retiram dos vagões de cargas os fardos, pacotes e caixas que vieram despachados pelas fábricas e atacadista do Rio de Janeiro. Enchem, aos poucos, o depósito da estação.Os passageiros vindos do Rio, Três Rios, Além Paraíba, Porto Novo, Recreio, Angaturama e Cisneiros descem e os de Palma, com as malas nas mãos, sobem no trem e se acomodam. Alguns já fecham as janelas com receio das faíscas que, com certeza, já começarão a aparecer na curva da Congelação. As crianças se ajeitam nas poltronas das janelas para verem, com mais atenção e medo, o trem passar pelo túnel, já na subida para Banco Verde.
Seu Barbosa bate o sino. É hora da partida. Um apito. Algumas crianças se escondem nos degraus dos últimos vagões para uma carona rápida . Seu Barbosa, atento, não percebe os moleques. O trem dá a partida. Quando o último vagão passa pela casa do agente, como bananas despencadas, começam pular moleques pela beirada da linha.
As luzes se apagam.
O próximo trem, só amanhã bem cedo.
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Na igreja, um coroinha sobe correndo os degraus que levam à torre para bater as badaladas do “angelus”. São seis horas da manhã. As beatas já voltam para casa, depois da comunhão das cinco e meia.
Em pouco tempo começa o movimento. Na estação, os ferroviários se deslocam para a manutenção e conservação dos trilhos. O grande galpão em frente à estação se enche rapidamente de carpinteiros, ferreiros e marceneiros. Passa um trole com três homens. O escritório é aberto. Seu Miranda conta mais uma das suas. Os outros riem, comentam e sabem que daqui a pouco outra história vai sair da boca daquele homem de cabelos brancos, barriga proeminente, camisa de linho bem engomada e calça segura por suspensórios de couro e que adora contar um caso..
Dona Julieta, ainda em sua casa, côa o café do dia, e o coloca em bules que deixa sobre a chapa do fogão a lenha. Pede à Glorinha que encomende ao Gibson e à Dona Isabel os biscoitos e pães. Dionísia chega, também cedo, para torrar o café no torrador a carvão. No quarador já estão a roupas brancas para alvejar.
A cidade já acordou. A carroça do leiteiro já circula pelas ruas empoeiradas.
- Leiteiro!!!!! Leiteiro!!!!!!
Dona Maria manda Conceição pegar a lata de gordura de coco, com medida de dois litros, e comprar o leite do Timtim.
Seu Sebastião e Seu Alcides já passam pela rua do comércio com suas carroças e combinam buscar as cargas que o trem deixou na noite anterior. Não podem se esquecer das latas com filmes que o Cine Brasil vai passar no fim-de-semana.
Em frente ao prédio onde funciona o correio, bem ao lado do Bar Rio Minas, do Seu Duarte, um cartaz já anuncia “Manina, a moça sem véu”, com Brigitte Bardot. Os homens da cidade em “polvorosa”, as mulheres enciumadas, os meninos, já pré-adolescentes, com caras feias porque a censura não lhes permite assistir a esta sessão de cinema.
Arnaud já abriu a banca de jornais: O Correio da Manhã e O Jornal ainda não chegaram. Mas a Revista do Rádio, O Cruzeiro e A Modinha Popular já estão penduradas com prendedores de roupas e são disputados pelos leitores ávidos por notícias e fuxicos de artistas . A criançada já procura pelos gibis do Cavaleiro Negro, Tarzan, Fantasma, Luluzinha, Bolinha, Pimentinha e muitos outros títulos. Livrinhos de bolso com histórias de “Giselle. A espiã nua que abalou Paris” e de faroeste também são muito procurados.
No Bar do Bené, logo em frente, Marcolino vende seus bilhetes de loteria para os senhores que vêm tomar um cafezinho com o pessoal do Banco Ribeiro Junqueira, que espera a hora de abrir a agência. Na cozinha, Bené retira do prego na parede, uma frigideira preta e engordurada e se prepara para a encomenda do primeiro bife do dia. No balcão, um menino grita:
- Benéééé’!!!! Me dá um picolé de groselha. Mas num serve redondo, não!
Mulher não entra no bar. Do lado de fora, Martinha faz sinal para Hélcio, que sai para falar com ela.
Hélcio marca ensaio de mais uma peça de teatro, que breve será encenada no palco do Cine Brasil e combina alguma coisa sobre o baile que acontecerá no clube da Sociedade Musical Santa Cecília no sábado. Será um grande baile com o Conjunto Agripet , formado por músicos das famílias Agrícola e Petrillo.
O dia corre. Nas portas da Casa Azul, do Seu Elias Abdalla, Nabih, o caixeiro, já expôs, com belas dobraduras, os novos tecidos que Seu Sebastião trouxe da Estação da Leopoldina. Ainda dá tempo de se comprar um belo corte e pedir pra Dona Helena, Dona Célia ou Dona Sahda fazer um vestido para o baile. Mas tem que ser rápido. O baile já será no dia seguinte.
Na venda do Seu Maninho, o Zé, também “do Maninho”, limpa o balcão e ajeita os sacos de arroz, feijão, açúcar e farinha, arruma os doces que acabaram de chegar na bandeja dentro da pequena vitrine, pendura chapéus de palha na porta e arruma os pesos da balança para o trabalho do dia.
Da Rua do Cinema dá para ouvir os gritos das crianças que brincam no recreio do Grupo Escolar Artur Bernardes.
E o dia segue em frente.
- “Demá Caçapa”. Grita um moleque. Demá corre atrás dele.Outros meninos gritam e correm também.
Por um caminho feito pelo meio do mato, uma turma segue para o campo de futebol da Avenida Governador Valadares , para mais uma pelada.
Cristina promete ir na casa da Maria José para brincar de aula. Na casa do Seu Oliveiros, as crianças penduram cordas nas árvores para brincadeira de trapézio e prendem um cabrito num cercadinho do fundo do quintal. Está montado o circo para o espetáculo que vai ser apresentado. O ingresso é pago com um palitinho de fósforo.
Frutas roubadas da Faride e da Emília. Pique-bandeira na Rua do Dó. Parte-queijo no jardim. Passeios no pasto do Ary. Fugidas até a Ponte de Tábua. Histórias de fantasmas inventadas para fazer medo nos mais novos. Brincadeiras na palha de arroz das máquinas do Nenê Alvim e do Seu Antônio Dingo.
Mas esta Palma não é apenas um “retrato na parede”como diz o poeta. É a minha memória viva que me dá tanto prazer partilhar numa conversa recheada de risos, às vezes lágrimas, mas muita alegria e muito riso.




Fotos:
- Baile no Salão da Sociedade Musical Santa Cecília (clube da ladeira), na década de 1950. No palco,o conjunto AGRIPET.
- Estação da Estrada de Ferro Leopoldina







2 comentários:

betometri.blogspot.com disse...

É isso mesmo Beto. Já há 38 anos que conheço Palma, posso dizer que peguei o restinho dessa Palma que você relatou. Progressos à parte, e muito necessário, dá saudades desse tempo. Me lembrei da "Bananeira dos sete males". É isso mesmo??

Sonia Canellas disse...

Beto, que tempo feliz era esse, nao e'? Da uma saudade danada! Da infancia, do Grupo Escolar, das Paradas de Sete de Setembro, do pique-bandeira...de tudo, enfim. Ainda bem que temos voce, guardiao da nossa memoria, cuidando de mante-la viva. Ate breve, querido amigo. Beijo pra voce e suas meninas.