quarta-feira, 28 de maio de 2014

UM AMOR DE MASCATE

Corre o ano de 1912.
A política ferve em Palma. E queima.
As ruas sempre apinhadas de gente que olha desconfiada para um lado e para o outro.  Na igreja Matriz de São Francisco, o padre reza as missas olhando de soslaio, sempre com um medo lhe segurando as palavras. Nos bares e botequins ninguém fala. Só bebe. Mas depois que bebe a língua destrava.
De repente, um tiro. E outro.
Todos  se abaixam. Sob as mesas dos bares não há mais lugar.
O temor e o tremor ocupam as ruas, os bares, a igreja e as casas.
Numa venda, lá pertinho da Caixa de Fósforo, Seu  Praxedes arruma o rolo de fumo em cima do balcão. Dona Emerenciana ajeita uma bandeja de doce de leite dentro do guarda-comida que serve de vitrine , perto de uma das portas da venda. Amontoados nas prateleiras, os mais diversos produtos: linguiça de porco, latas de querosene, pavios de lampião e lamparina, peças de  tecido, malas, banha... e por aí vai.
Nos fundos da venda fica a casa de Praxedes. Cinco  filhos – o mais velho com oito anos  - brincam de roubar cavalos e pegar passarinhos. As armas são pedaços de pau retirados do monte de lenha no quintal. No fogão, a água ferve e o feijão cozinha. Por cima do fogão, algumas carnes penduradas no fumeiro. Praxedinho, o mais novo, vem mexer com um pau de lenha. Santinha, a  empregada, o adverte:
- Praxedinho, Praxedinho, menino que mexe com fogo amanhece mijado. Sai daí, menino!!!
Praxedinho sai correndo e volta para o quintal.
Na venda, Emerenciana acaba de passar um pano molhado no chão. O mascate Wadih apeia do cavalo e o amarra na árvore, pega a mala cheia de cortes de tecido e se dirige para a venda do Seu Praxedes. Ao entrar olha com “cobiça” para Dona Emerenciana que percebe, fica feliz, mas desvia o olhar.
Enquanto Praxedes arruma  no chão os sacos com arroz, farinha, feijão, açúcar e fubá,  Emerenciana se volta para organizar os tecidos. Wadih se aproxima do balcão e diz baixinho para Emerenciana:
- A senhora não quer vir embora comigo?
Emerenciana enrubece. E vai para dentro de casa. Chama as crianças para o almoço e manda Santinha por a mesa. Mas o pensamento voa e ela mastiga o som das palavras de Wadih.
À noite, ao se deitar, ela conta o acontecido para Praxedes:
- Praxedes, o mascate me chamou para ir embora com ele.
Praxedes faz pouco da novidade. Vira para o canto. E dorme.
Emerenciana pensa nas palavras de Wadih. E sonha.
Passa o tempo. Rotina em casa. Rotina na venda. Só não tem rotina na cidade. Um grupo de homens invade a cidade e a população se esconde em casa.
Na Câmara Municipal, a oposição exige a renúncia do presidente, que resiste.
Na venda de Praxedes, o mascate Wadih está de volta. Despeja em cima do balcão as mais variadas mercadorias. Passa a mão por baixo dos tecidos e toca a mão de Emerenciana. Ela se esquiva. Ele dá um sorriso. Praxedes conta o dinheiro. Wadih repete o convite:
- A senhora não quer vir embora comigo?
Emerenciana sai rapidamente. Praxedes faz as compras. Chega a noite. Praxedes fecha a venda. Entra. Faz um escalda pés, veste o pijama e vai para a cama.
Emerenciana conta o ocorrido:
- Praxedes, o mascate voltou a me chamar para fugir com ele.
Como da outra vez,  Praxedes desdenha, vira para o lado e rapidamente está roncando.
Também como da outra vez, Emerenciana pensa nas palavras de Wadih. E sonha acordada.
O tempo corre. O Presidente da Câmara, juntamente com alguns capangas,  é brutalmente assassinado por um grupo de matadores de aluguel. O vice-presidente assume a Câmara. A cidade vive  dias de aparente tranquilidade. Por algum tempo as pessoas sorriem , conversam, sentam nas calçadas como antes. E, na venda de Praxedes, Wadih  volta a fazer o convite, desta vez com mais veemência.
-  A senhora não quer vir embora comigo hoje à noite? Vamos embora daqui. Vamos para a capital. Lá ninguém nos encontrará
Passam as horas. Praxedes , que tinha ido até a fazenda abater um boi para vender a carne, volta para casa. Dessa vez com um ramo de hortênsias na mão. Chega gritando:
- Emerenciana.... Emerenciana.... Olha o que eu trouxe para você.
Mas Emerenciana não vem receber as flores. Praxedes olha em volta e só escuta o som das vozes das crianças vindo da cozinha. Coloca as flores em cima da mesa. E sua mão esbarra num pedaço de papel de embrulho. Ele pega o papel. Tem alguma coisa escrita. Ajeita os óculos. E lê.
- “Praxedes. Por várias vezes eu lhe falei que o mascate estava me chamando para ir embora com ele. Você não manifestou espanto, amor, apreensão, nada. Foi indiferente. E indiferença não faz ninguém feliz. Por isso estou indo embora em busca da minha felicidade. Deixo meus filhos. Não tenho como levá-los."
A partir desse dia nunca mais alguém pode mencionar o nome Emerenciana naquela casa.  Era  terminantemente proibido. Flores também não podiam entrar, muito menos hortênsias.
Praxedes criou os filhos sozinho. E ninguém ouvia falar do paradeiro de Emerenciana. Os meninos sofriam. E Praxedinho cresceu sem sequer saber como era o rosto da mãe. Quando ela foi embora ele era muito pequeno. Os outros se lembravam dela. Mas sofriam calados.
O tempo passou. Praxedes refez a vida com  outra mulher que se dispôs a viver com ele sem as bênçãos do matrimônio. E Praxedinho na esperança de um dia ver a mãe. Mas ninguém podia falar nisso. Se Praxedes soubesse que alguém queria ver Emerenciana, ele matava. Matava mesmo.
Mas os filhos não esqueciam da mãe. Até que souberam que ela morava no Rio, numa rua da Lapa. Com uma desculpa que não vem ao caso, Antonio, o mais velho, foi para o Rio com Praxedinho. Porém,  o respeito e o medo do pai não os deixaram procurar por Emerenciana. Eles  alugaram um quarto numa pensão em frente à casa onde ela morava e ficaram  a postos, na esperança de vê-la.
Até que no terceiro dia em que eles estavam no Rio, ela, Emerenciana,  abriu a porta e saiu para varrer a calçada. Linda, como outrora. Antônio teve o ímpeto de correr até ela. Mas se conteve.Praxedinho sentiu as lágrimas virem aos seus olhos. Viu Emerenciana. Deu vontade de abraçar a mãe. Mas veio o medo do pai. E ele só guardou na sua retina a imagem dela. E esta imagem o acompanhou por toda a vida.  E foi só. Nunca mais a viu.
.........................................................................................................................................................Três gerações depois, um convite de casamento.
Em Palma, Cleonício vai se casar com Annita. Annita é bisneta de Praxedinho. Casamento realizado com festa. A Igreja de São Francisco cheia de convidados. Cleonício é contador em Niterói. Família de posses. Famílias em festa. Dias depois , já em casa, no bairro de Icaraí, arrumando velhas caixas de documentos da família, Annita descobre que Cleónício é bisneto de Wadih e Emerenciana.
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Família unida outra vez.
O Velho Praxedes deve estar se revirando no tumulo até hoje.





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