Eu me viro na cama e espreguiço.
Os ruídos que vêm da cozinha me despertam.
O cheirinho do angu que mamãe acaba de mexer toma conta da casa. Mas logo depois é abafado pelo aroma mais forte do café.
Papai já pegou a bicicleta e foi para o sítio onde Tarcísio juntou as vacas leiteiras. No curral , os mugidos. Na várzea ao lado , a plantação de arroz quase coberta pela água está escondida por uma neblina espessa , característica das manhãs mais frias.
Em casa, a gente tenta dormir mais um pouquinho, mas mamãe nos põe pra fora da cama e diz :
- Se quiserem mesmo comungar , levantem que já passa das cinco.
Eu me levanto num pulo, visto meu uniforme do grupo escolar, ponho meu casaco de frio e, ladeira acima, vou pra Igreja de São Francisco.
Padre Thiago já está no altar e se prepara para distribuir a comunhão para os fiéis que se dispõem a levantar cedo nesse frio.
A mesa da comunhão se enche rapidamente. Eu, com a roupa de coroinha, patena na mão, ajudo o padre a dar comunhão.
Está quase na hora do relógio da igreja bater seis horas. Subo a escadaria, passo pelo coro, subo outra escada, passo pela caixa de máquina do relógio, me espremo em outra escadinha e chego no alto da torre. Lá eu fico esperando as seis badaladas para, em seguida, bater o ângelus. É motivo de orgulho para um menino do meu tamanho e da minha idade conseguir bater aquele sino tão grande. O som da badalada chega a doer os ouvidos.
Desço as escadas feliz da vida.
O meu ramalhete da cruzada eucarística infantil já está quase cheio: muitas comunhões, um grande número de jaculatórias, muito terços rezados, muitas missas assistidas... Dona Judith, dessa vez, vai ter só elogios pra mim.
Também, depois de ter desobedecido as regras da cruzada e pulado muito carnaval, só e restava isso mesmo. rezar muito e pedir perdão a Deus. E torcer pra não ser chamado de “apóstolo do mau exemplo” outra vez.
Mas cabeça de criança é assim mesmo. E o coração de criança é imprevisível.
Desço pra casa. A fome aperta. Sem comer desde a véspera! Comunhão exige pelo menos três horas de jejum.
A ladeira parece até maior do que é. Mas tenho que descer devagar. No domingo passado, com a roupa branca da cruzada, fui tentar descer correndo, escorreguei, “catei cavaco”, a roupa ficou imunda,os joelhos estão ralados até hoje e a orelha ardendo dos puxões que levei para aprender a me comportar e não correr ladeira abaixo.
Chego em casa, tomo meu café com pão e manteiga, embrulho um pão com goiabada pra levar de merenda, pego um amarradinho de couve pra sopa da caixa escolar, pego meu Compêndio de Ciências Sociais de Genoveva Khedi, coloco dentro da minha pasta, aponto os lápis, limpo as borrachas, verifico se os deveres de casa estão todos feitos e vou por grupo.
Tenho que chegar bem cedo. A turma já me espera na pracinha pra brincarmos de parte-queijo.
Até que o sino bate. Dona Iná, Dona Maria Freitas e Aparecida do Zelino já estão na cozinha. As professoras a postos. E Dona Judith, com seu olhar severo, no galpão. Todos em fila. Hoje é quinta. Tem hino nacional? Não. Hoje é dia 15 de outubro. O caderno de hinos é aberto e a criançada canta:
Professora , querida professora,
Parabéns neste dia tão feliz,
Deus lhe dê nesta data , professora,
Todo bem, todo bem que a gente quis.
Salve quinze de outubro, salve o dia,
Que tão perto nos fala o coração,
Professora recebe nesse dia
Todo amor, toda nossa gratidão.
Dia a dia a ensinar,
Sempre amiga a indagar,
be-a-ba, dois e dois quantos são.
No recreio a correr,
Como nós a viver,
A nos dar sempre o seu coração.
(ACHO QUE O HINO À PROFESSORA ERA ASSIM MESMO)