Corre o ano de 1912.
A política ferve em Palma. E queima.
As ruas sempre apinhadas de
gente que olha desconfiada para um lado e para o outro. Na igreja Matriz de São Francisco, o padre
reza as missas olhando de soslaio, sempre com um medo lhe segurando as
palavras. Nos bares e botequins ninguém fala. Só bebe. Mas depois que bebe a
língua destrava.
De repente, um tiro. E outro.
Todos se abaixam. Sob as mesas dos bares não há
mais lugar.
O temor e o tremor ocupam as
ruas, os bares, a igreja e as casas.
Numa venda, lá pertinho da
Caixa de Fósforo, Seu Praxedes arruma o rolo de fumo em cima do balcão. Dona Emerenciana ajeita uma bandeja de doce de
leite dentro do guarda-comida que serve de vitrine , perto de uma das portas da
venda. Amontoados nas prateleiras, os mais diversos produtos: linguiça de
porco, latas de querosene, pavios de lampião e lamparina, peças de tecido, malas, banha... e por aí vai.
Nos fundos da venda fica a
casa de Praxedes. Cinco filhos – o mais
velho com oito anos - brincam de roubar
cavalos e pegar passarinhos. As armas são pedaços de pau retirados do monte de
lenha no quintal. No fogão, a água ferve e o feijão cozinha. Por cima do fogão,
algumas carnes penduradas no fumeiro. Praxedinho, o mais novo, vem mexer com um
pau de lenha. Santinha, a empregada, o
adverte:
- Praxedinho, Praxedinho,
menino que mexe com fogo amanhece mijado. Sai daí, menino!!!
Praxedinho sai correndo e
volta para o quintal.
Na venda, Emerenciana acaba de
passar um pano molhado no chão. O mascate Wadih apeia do cavalo e o amarra na
árvore, pega a mala cheia de cortes de tecido e se dirige para a venda do Seu
Praxedes. Ao entrar olha com “cobiça” para Dona Emerenciana que percebe, fica
feliz, mas desvia o olhar.
Enquanto Praxedes arruma no chão os sacos com arroz, farinha, feijão,
açúcar e fubá, Emerenciana se volta para
organizar os tecidos. Wadih se aproxima do balcão e diz baixinho para
Emerenciana:
- A senhora não quer vir
embora comigo?
Emerenciana enrubece. E vai
para dentro de casa. Chama as crianças para o almoço e manda Santinha por a
mesa. Mas o pensamento voa e ela mastiga o som das palavras de Wadih.
À noite, ao se deitar, ela
conta o acontecido para Praxedes:
- Praxedes, o mascate me
chamou para ir embora com ele.
Praxedes faz pouco da
novidade. Vira para o canto. E dorme.
Emerenciana pensa nas palavras
de Wadih. E sonha.
Passa o tempo. Rotina em casa.
Rotina na venda. Só não tem rotina na cidade. Um grupo de homens invade a cidade
e a população se esconde em casa.
Na Câmara Municipal, a oposição
exige a renúncia do presidente, que resiste.
Na venda de Praxedes, o
mascate Wadih está de volta. Despeja em cima do balcão as mais variadas
mercadorias. Passa a mão por baixo dos tecidos e toca a mão de Emerenciana. Ela
se esquiva. Ele dá um sorriso. Praxedes conta o dinheiro. Wadih repete o
convite:
- A senhora não quer vir embora
comigo?
Emerenciana sai rapidamente.
Praxedes faz as compras. Chega a noite. Praxedes fecha a venda. Entra. Faz um
escalda pés, veste o pijama e vai para a cama.
Emerenciana conta o ocorrido:
- Praxedes, o mascate voltou a
me chamar para fugir com ele.
Como da outra vez, Praxedes desdenha, vira para o lado e
rapidamente está roncando.
Também como da outra vez,
Emerenciana pensa nas palavras de Wadih. E sonha acordada.
O tempo corre. O Presidente da
Câmara, juntamente com alguns capangas, é
brutalmente assassinado por um grupo de matadores de aluguel. O vice-presidente
assume a Câmara. A cidade vive dias de aparente tranquilidade. Por algum
tempo as pessoas sorriem , conversam, sentam nas calçadas como antes. E, na
venda de Praxedes, Wadih volta a fazer o
convite, desta vez com mais veemência.
- A senhora não quer vir embora comigo hoje à
noite? Vamos embora daqui. Vamos para a capital. Lá ninguém nos encontrará
Passam as horas. Praxedes ,
que tinha ido até a fazenda abater um boi para vender a carne, volta para casa.
Dessa vez com um ramo de hortênsias na mão. Chega gritando:
- Emerenciana....
Emerenciana.... Olha o que eu trouxe para você.
Mas Emerenciana não vem
receber as flores. Praxedes olha em volta e só escuta o som das vozes das
crianças vindo da cozinha. Coloca as flores em cima da mesa. E sua mão esbarra
num pedaço de papel de embrulho. Ele pega o papel. Tem alguma coisa escrita.
Ajeita os óculos. E lê.
- “Praxedes. Por várias vezes
eu lhe falei que o mascate estava me chamando para ir embora com ele. Você não
manifestou espanto, amor, apreensão, nada. Foi indiferente. E indiferença não
faz ninguém feliz. Por isso estou indo embora em busca da minha felicidade.
Deixo meus filhos. Não tenho como levá-los."
A partir desse dia nunca mais
alguém pode mencionar o nome Emerenciana naquela casa. Era
terminantemente proibido. Flores também não podiam entrar, muito menos
hortênsias.
Praxedes criou os filhos
sozinho. E ninguém ouvia falar do paradeiro de Emerenciana. Os meninos sofriam.
E Praxedinho cresceu sem sequer saber como era o rosto da mãe. Quando ela foi
embora ele era muito pequeno. Os outros se lembravam dela. Mas sofriam calados.
O tempo passou. Praxedes refez
a vida com outra mulher que se dispôs a
viver com ele sem as bênçãos do matrimônio. E Praxedinho na esperança de um dia
ver a mãe. Mas ninguém podia falar nisso. Se Praxedes soubesse que alguém
queria ver Emerenciana, ele matava. Matava mesmo.
Mas os filhos não esqueciam da
mãe. Até que souberam que ela morava no Rio, numa rua da Lapa. Com uma desculpa
que não vem ao caso, Antonio, o mais velho, foi para o Rio com Praxedinho. Porém, o respeito e o medo do pai não os deixaram procurar por Emerenciana. Eles alugaram um quarto numa pensão em frente à
casa onde ela morava e ficaram a postos,
na esperança de vê-la.
Até que no terceiro dia em que
eles estavam no Rio, ela, Emerenciana, abriu a porta e saiu para varrer a calçada. Linda, como outrora. Antônio teve o ímpeto de correr até ela. Mas se conteve.Praxedinho
sentiu as lágrimas virem aos seus olhos. Viu Emerenciana. Deu vontade de
abraçar a mãe. Mas veio o medo do pai. E ele só guardou na sua retina a imagem
dela. E esta imagem o acompanhou por toda a vida. E foi só. Nunca mais a viu.
.........................................................................................................................................................Três
gerações depois, um convite de casamento.
Em Palma, Cleonício vai se casar com Annita. Annita é bisneta de Praxedinho. Casamento realizado com festa. A Igreja de São Francisco cheia de convidados. Cleonício é contador em Niterói. Família de posses. Famílias em festa. Dias depois , já em casa, no bairro de Icaraí, arrumando velhas caixas de documentos da família, Annita descobre que Cleónício é bisneto de Wadih e Emerenciana.
Em Palma, Cleonício vai se casar com Annita. Annita é bisneta de Praxedinho. Casamento realizado com festa. A Igreja de São Francisco cheia de convidados. Cleonício é contador em Niterói. Família de posses. Famílias em festa. Dias depois , já em casa, no bairro de Icaraí, arrumando velhas caixas de documentos da família, Annita descobre que Cleónício é bisneto de Wadih e Emerenciana.
...............................................................................................................................................
Família unida outra vez.
O Velho Praxedes deve estar se revirando no tumulo até hoje.
O Velho Praxedes deve estar se revirando no tumulo até hoje.
Nenhum comentário:
Postar um comentário