1959. Palma. Três da tarde. Igreja
Matriz de São Francisco de Assis. Altar-mor nu. Imagens cobertas com tecido
roxo. A matraca marca o que o relógio da torre da igreja não pode registar.
Senhoras sentadas nos bancos do lado direito da igreja com seus véus pretos.
Meninas e senhorinhas com seus véus bem
alvos. Nas mãos, terços. No altar, Padre Henrique preside a acerimônia que reflete sobre a paixão de
Nosso Senhor. Emoção. Crianças da Cruzada Eucarística com seus uniformes bem
alvos e suas fitas amarelas sentados em silêncio.Fitas Azuis dos Congregados
Marianos e das Filhas de Maria. Fitas em verde-amarelo da Irmandade de Nossa
Senhora Aparecida. Fitas vermelhas do Apostolado da Oração. . Todos em
silêncio. Nos bancos do lado esquerdo os homens seguram a emoção. Padre
Henrique se posiciona no centro , bem em frente ao altar principal, próximo á mesa da comunhão. Cristo na cruz.
Morto. Duas grandes filas se formam. Um
a um, uma a uma, cada um, cada uma faz o
sinal da cruz e beija a imagem do Cristo crucificado. Ninguém canta. Só beija a cruz. E reza. E reza. Crianças da
Cruzada ansiosas . Em casa, um prato de canjica as espera. Adultos jejuam.
Todos para casa. Crianças descem e
chegam a derrapar no cascalho que cobre o morro da igreja. Mas querem descer
bem rápido. A canjica pode não esperar. Adultos descem e o sol da tarde ainda
queima. Mulheres com os véus dobrados nos braços. Homens com seus chapéus.
Silêncio na descida. Daqui a pouco todos
têm que subir, mais uma vez, a ladeira para ver a descida da cruz. No Salão Dom
Bosco já começam a se aprontar. José de Mattos, o Zé do Maninho, se veste de José de Arimathéia. Geraldo de Mattos, o DAco, se transforma em Nicodemos. Cida , que se
veste de Maria, a mãe de Cristo, em silêncio, já tenta entrar no clima.Garibalde,
como o discípulo amado, João, Maria Madalena e as outras Marias estão prontos.
Verônica ensaia baixinho o O VOS
OMNES... e verifica se o pano com a imagem do Cristo esnsanguentado está em
ordem. Na igreja, um pano preto , como cortina, cobre o altar principal. Na frente
dele , uma enorme cruz. Na cruz, o corpo de Cristo espera pelo sepultamento.
Fiéis lotam os bancos. Alguns choram emocionados diante da cruz. A matraca
anuncia que já são sete da noite. Entram Arimathéia, Nicodemos, Maria e os outros. Silenciosamente Arimathéia lança um
tecido branco em volta do corpo inerte do Cristo. No chão, coberto por tecido
de linho branco, um esquife vazio espera. Uma escada. Arimathéia sobe. Retira a
coroa de espinhos. Passa para Nicodemos que a entrega a Maria. Maria chora e
beija a coroa. Depois a deposita no esquife. Em seguida, Arimathéia retira um
cravo de uma das mãos de Jesus. Entrega o cravo para Nicodemos, que o passa
para Maria. Esquife. Assim vai até que todos os cravos são retirados. Os braços
de Cristo pendem e o corpo é sustentado
pelo tecido branco estrategicamente posicionado por Arimathéia. Choros pela
igreja. Maria envolta em dores. Madalena chora. O corpo é descido lentamente da
cruz. A igreja, tensa. Arimathéia, auxiliado por Nicodemos segura o corpo nos
braços. E o deita sobre os braços de Maria, que o abraça. E chora. Chora. E o
povo também chora. Comoção geral. Emoção. A matraca é a música que se ouve. O
corpo é colocado no esquife e coberto pelo
tecido de linho. Homens de um lado, mulheres do outro, todos saem da
igreja e formam uma enorme fila. Cada um com uma vela acesa. As luzes da cidade
são apagadas. A matraca bate. Demá sai na frente. E bate a matraca. A procissão
sai . Desce o morro da igreja. Mais um tempinho, e Seu Leovergildo , com outra
matraca, entra no meio da procissão. A cidade toda às escuras. Parece que uma
serpente iluminada percorre o morro da igreja, a ladeira e já chega na rua do
grupo Artur Bernardes. Na esquina do João Barbeiro, Guadalupe e Maria da
Naninha olham da janela um menino que desce a ladeira com um banquinho e o coloca
no meio da rua, bem em frente ao Leão da Esquina, no início da Rua do Cinema.
José Rodrigues ( Zé do Padre), que também acompanha a procissão com uma matraca,
para. A Verônica, Aurette, vestida de preto, sobe no banquinho e, desenrolando
um pano que traz a figura da face ensanguentada de Cristo , canta magistral e sentimentalmente o
O VOS OMNES. As filas da procissão param . Guadalupe ( a Gudilupe) enxuga uma
lágrima. E se ajoelha diante da passagem do esquife.
Dona Maria Godêncio, com seu véu de
renda preta, reservado para grandes ocasiões, canta bem alto e o povo a
acompanha: Mãe de Jesus transpassada,De dores aos pés da cruz.*Rogai
por nós, rogai por nós,Rogai por nós, a Jesus.* BIS
Uma mãe, puxando um filho pequeno pelo braço, se
aproxima, faz o sinal da cruz e passa com a criança por baixo do esquife. Acredita
que assim a bronquite do filho está curada.
Do bolso do paletó, um senhor tira uma vela nova , acende na chama da outra bem
pequena que traz na mão, coloca o toco
no canto do meio fio, encaixa a nova no furo do pedaço de papelão que usa para proteger as
mãos dos pingos de cera e segue na procissão. E os cantinhos das calçadas ficam
cheios de toquinhos de vela que teimam em se manter acesos.
No alto da igreja ainda tem gente aguardando o
momento de sair em procissão. Com exceção de algumas pessoas impossibilitadas de saírem de casa, parece
que toda a cidade está na rua. Nas varandas, janelas e calçadas, pessoas
ajoelhadas em sinal de respeito e devoção. Os bares com as portas arriadas. O
som das matracas ecoa por todas as ruas. A cidade é tomada pela procissão que serpenteia iluminando tudo. O
esquife chega de volta à matriz. O Padre segue direto para a Sacristia onde os
coroinhas o ajudam para guardar as vestes. As mulheres tiram os véus. As fitas são tiradas dos pescoços, dobradas e
guardadas dentro dos missais. No Salão Dom Bosco, Arimathéia, Nicodemos, as Marias e os
discípulos se trocam. As grandes imagens
do Senhor dos Passos e de Nossa Senhora das Dores ocupam o centro do salão. Dona Judith já está
na Matriz. Ela nem acompanhou a
procissão. Já está lá dentro planejando
a festa que fará para os olhos
dos cristãos presentes na igreja na hora de “arrebentar a aleluia”. E a malhação de Judas?
Mas isso é outra história.
Um comentário:
Linda descrição das antigas e belas procissões.
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