sábado, 30 de março de 2013

A SEXTA É SANTA


1959. Palma. Três da tarde. Igreja Matriz de São Francisco de Assis. Altar-mor nu. Imagens cobertas com tecido roxo. A matraca marca o que o relógio da torre da igreja não pode registar. Senhoras sentadas nos bancos do lado direito da igreja com seus véus pretos. Meninas  e senhorinhas com seus véus bem alvos. Nas mãos, terços. No altar, Padre Henrique preside  a acerimônia que reflete sobre a paixão de Nosso Senhor. Emoção. Crianças da Cruzada Eucarística com seus uniformes bem alvos e suas fitas amarelas sentados em silêncio.Fitas Azuis dos Congregados Marianos e das Filhas de Maria. Fitas em verde-amarelo da Irmandade de Nossa Senhora Aparecida. Fitas vermelhas do Apostolado da Oração. . Todos em silêncio. Nos bancos do lado esquerdo os homens seguram a emoção. Padre Henrique se posiciona no centro , bem em frente ao altar principal,  próximo á mesa da comunhão. Cristo na cruz. Morto. Duas grandes filas se formam.  Um a um, uma a uma, cada um, cada uma  faz o sinal da cruz e beija a imagem do Cristo crucificado. Ninguém canta.  Só beija a cruz. E reza. E reza. Crianças da Cruzada ansiosas . Em casa, um prato de canjica as espera. Adultos jejuam. Todos para casa. Crianças descem  e chegam a derrapar no cascalho que cobre o morro da igreja. Mas querem descer bem rápido. A canjica pode não esperar. Adultos descem e o sol da tarde ainda queima. Mulheres com os véus dobrados nos braços. Homens com seus chapéus. Silêncio na descida.  Daqui a pouco todos têm que subir, mais uma vez, a ladeira para ver a descida da cruz. No Salão Dom Bosco já começam a se aprontar. José de Mattos, o Zé do Maninho,  se veste de José de Arimathéia.  Geraldo de Mattos, o DAco,  se transforma em Nicodemos. Cida , que se veste de Maria, a mãe de Cristo, em silêncio, já tenta entrar no clima.Garibalde, como o discípulo amado, João, Maria Madalena e as outras Marias estão prontos. Verônica ensaia  baixinho o O VOS OMNES... e verifica se o pano com a imagem do Cristo esnsanguentado está em ordem. Na igreja, um pano preto , como cortina, cobre o altar principal. Na frente dele , uma enorme cruz. Na cruz, o corpo de Cristo espera pelo sepultamento. Fiéis lotam os bancos. Alguns choram emocionados diante da cruz. A matraca anuncia que já são sete da noite. Entram Arimathéia, Nicodemos, Maria e os  outros. Silenciosamente Arimathéia lança um tecido branco em volta do corpo inerte do Cristo. No chão, coberto por tecido de linho branco, um esquife vazio espera. Uma escada. Arimathéia sobe. Retira a coroa de espinhos. Passa para Nicodemos que a entrega a Maria. Maria chora e beija a coroa. Depois a deposita no esquife. Em seguida, Arimathéia retira um cravo de uma das mãos de Jesus. Entrega o cravo para Nicodemos, que o passa para Maria. Esquife. Assim vai até que todos os cravos são retirados. Os braços de Cristo pendem  e o corpo é sustentado pelo tecido branco estrategicamente posicionado por Arimathéia. Choros pela igreja. Maria envolta em dores. Madalena chora. O corpo é descido lentamente da cruz. A igreja, tensa. Arimathéia, auxiliado por Nicodemos segura o corpo nos braços. E o deita sobre os braços de Maria, que o abraça. E chora. Chora. E o povo também chora. Comoção geral. Emoção. A matraca é a música que se ouve. O corpo é colocado no esquife e coberto pelo  tecido de linho. Homens de um lado, mulheres do outro, todos saem da igreja e formam uma enorme fila. Cada um com uma vela acesa. As luzes da cidade são apagadas. A matraca bate. Demá sai na frente. E bate a matraca. A procissão sai . Desce o morro da igreja. Mais um tempinho, e Seu Leovergildo , com outra matraca, entra no meio da procissão. A cidade toda às escuras. Parece que uma serpente iluminada percorre o morro da igreja, a ladeira e já chega na rua do grupo Artur Bernardes. Na esquina do João Barbeiro, Guadalupe e Maria da Naninha olham da janela um menino que desce a ladeira com um banquinho e o coloca no meio da rua, bem em frente ao Leão da Esquina, no início da Rua do Cinema. José Rodrigues ( Zé do Padre), que também acompanha a procissão com uma matraca, para. A Verônica, Aurette, vestida de preto, sobe no banquinho e, desenrolando um pano que traz a figura da face ensanguentada de  Cristo , canta magistral e sentimentalmente o O VOS OMNES. As filas da procissão param . Guadalupe ( a Gudilupe) enxuga uma lágrima. E se ajoelha diante da passagem do esquife.

Dona Maria Godêncio, com seu véu de renda preta, reservado para grandes ocasiões, canta bem alto e o povo a acompanha: Mãe de Jesus transpassada,De dores aos pés da cruz.*Rogai por nós, rogai por nós,Rogai por nós, a Jesus.* BIS

Uma mãe, puxando um filho pequeno pelo braço, se aproxima, faz o sinal da cruz e passa com a criança por baixo do esquife. Acredita que assim a bronquite do filho está curada.

Do bolso do paletó, um senhor tira uma  vela nova , acende na chama da outra bem pequena  que traz na mão, coloca o toco no canto do meio fio, encaixa a nova no furo do  pedaço de papelão que usa para proteger as mãos dos pingos de cera e segue na procissão. E os cantinhos das calçadas ficam cheios de toquinhos de vela que teimam em se manter acesos.

No alto da igreja ainda tem gente aguardando o momento de sair em procissão. Com exceção de algumas pessoas  impossibilitadas de saírem de casa, parece que toda a cidade está na rua. Nas varandas, janelas e calçadas, pessoas ajoelhadas em sinal de respeito e devoção. Os bares com as portas arriadas. O som das matracas ecoa por todas as ruas. A cidade é tomada pela  procissão que serpenteia iluminando tudo. O esquife chega de volta à matriz. O Padre segue direto para a Sacristia onde os coroinhas o ajudam para guardar as vestes. As mulheres tiram os véus.  As fitas são tiradas dos pescoços, dobradas e guardadas dentro dos missais. No Salão Dom Bosco,  Arimathéia, Nicodemos, as Marias e os discípulos  se trocam. As grandes imagens do Senhor dos Passos e de Nossa Senhora das Dores  ocupam o centro do salão. Dona Judith já está na  Matriz. Ela nem acompanhou a procissão. Já está lá dentro planejando  a  festa que fará para os olhos dos cristãos presentes na igreja na hora de “arrebentar a aleluia”.  E a malhação de Judas?

Mas isso é outra história.

 

 

Um comentário:

Anônimo disse...

Linda descrição das antigas e belas procissões.