Hoje, tenho a honra e o prazer de dividir com você, leitor deste blog, um conto do palmense Victor Hugo do Carmo
UM TESTEMUNHO CEM ANOS DEPOIS
Aquele
lugarejo: o “Curato da Freguesia de Santa Rita da Meia-pataca”, ao fim do século
XVIII, além das duas ruas existentes, tinha apenas caminhos poeirentos e
lamacentos, por onde passavam as tropas de burros e mulas em demanda aos Campos
dos Cataguazes, vindas do litoral.
Quando eu nasci, no século XIX, a Vila já era
consagrada a São Francisco de Assis e passara a se chamar Vila do Capivara nome do riacho que divide o lugar, em duas
partes: uma alta onde se ergueu depois a Matriz
e a parte baixa beirando o ribeirão.
Eu tenho plena consciência de que contar
estórias após ter falecido é um recurso usual dos escritores e além dos grandes
como Machado de Assis, muitos já usaram esse recurso. Não pretendo, portanto, inovar. Em vida tive vontade de escrever parte do que
ora passo a narrar, mas os meus afazeres e, talvez, também a pouca habilidade
no manejo da língua me impediram.
Agora, aqui onde estou, fico mais a vontade e as críticas que poderão
surgir não podem mais me atingir.
Quando
eu morri, foi no dia 12 de outubro de 1912, fui enterrado no Cemitério do Mato
Dentro, no alto da Igreja. A Vila,
então, já se tornara cidade por decreto real de 1871, na época do Segundo
Império. Sobrevivi nos tempos iniciais
da República. Pouca gente soube como
ocorreu a minha morte e não é difícil saber o por quê. Fui vítima de um tiro de garrucha que não
era endereçado a mim e que, por minha falta de sorte, ricocheteou num poste
varou meu peito e atingiu o meu coração.
Isto foi em 1912 – fazendo agora o
centenário - ano fatídico para a Vila do Capivara. No início de outubro daquele ano ocorreu o
assassinato do Coronel De Araújo, fato
que ocupou a atenção da cidade e
a minha morte foi ignorada naquele dia
e só foi sentida por alguns dias após
quando parentes me foram buscar, cadáver abandonado na morgue do Cemitério do
Mato Dentro.
Lastimável,
pois, por ironia, fui confundido como um dos capangas do Coronel. Por desgraça, ainda maior, eu era desafeto do
homem e estava preso na cadeia pública por ordem dele. Nunca soube e até hoje não sei qual foi a
razão principal que ele teve ou alegou para me meter na cadeia. Daqui, do mundo
eterno onde me encontro, posso me lembrar que eu não concordava com o Coronel -
irremovível chefe político - e com a violência que ele disseminava, não só na
Vila do Capivara como em toda região; até mesmo no vizinho Estado do Rio.
Aliás, quero ser bem sincero, não vale mentir
e iludir-se. Eu me atrevia, sim, a contestar o velho Coronel. Soube, então, que ele mandara me matar por
um dos seus capangas. O homem escalado
para fazer o serviço era um tal de
Joviano Silva, um negão que me devia alguns favores e morara, numa
casa na Fazenda do Degredo do meu avô.
Ele gostava muito da minha família e convenceu o Coronel a modificar a
minha pena de morte pela de prisão. Coisa que, como se verá adiante, pouco
adiantou.
Na
manhã do dia em que a tropa dos chamados Justiceiros invadiu a Vila um raio de
esperança penetrou pelas grades da cadeia. Eu estava preso havia mais de um ano
e já me habituara ao convívio dos outros presos; a maioria, como eu, estava ali
por ordem do velho Coronel que da sede da Fazenda da Divisa comandava
tudo. Tinha até fazendeiro preso, porém
a maior parte era de gente humilde.
Antes
de prosseguir nestas lembranças devo esclarecer que uma das maiores lutas
políticas que tive foi em prol da educação na cidade. Ora, eu aprendera a ler
na sala de visitas da Dona Nenzinha, professora, então velinha, que viera da
Vila de São Felix e morava no alto da Igreja Matriz, pois não havia na cidade,
ainda, uma escola, primária que fosse.
Quando o Grupo Escolar foi erguido, por subscrição do povo da Vila, num
areal perto da Praça da Prefeitura eu já havia morrido. Pode ser que o fato de
me meter nesse assunto seria o meu pecado; sei lá! Não quero atribuir ao
Coronel culpa de algo que ele não teve. De qualquer forma nunca me constou que
ele se manifestasse sobre a questão do ensino e, mesmo alguma simpatia por mim.
A nossa cidade de Palma naquela à época
era um mar de analfabetismo; somente os filhos dos fazendeiros e alguns ricos –
analfabetos - alfabetizavam seus filhos.
De dentro da cadeia naquela manhã fatídica
assistimos, eu e os outros detentos, através das grades nuas, a tropa dos
Justiceiros penetrar na Praça da Prefeitura.
Houve resistência pouca, mas o tiroteio foi grande e era gente a correr
em direção da estrada que vai para Cisneiros, e a procurar abrigo, correndo
para a estação ferroviária, onde as ligações telegráficas haviam sido cortadas
como se soube depois. As janelas e
portas das casas que rodeiam a Praça da Prefeitura estavam trancadas, nenhum
morador mostrava sua cara. Naquele
momento a fumaça de pólvora fez escurecer o largo e das grades onde eu estava
mal se via o coreto ao centro. Era ainda
manhã e a cavalaria tomara conta da cidade, da
praça e do seu entorno.
A
primeira sensação que tive foi de alívio: alguém viria nos soltar; todos presos
pensaram da mesma forma e chegamos a nos abraçar em comemoração à liberdade que
parecia iminente.
Fora
das celas, entre os presos tidos como especiais, estavam também o sacristão
Ambrósio Pena - conhecido na Vila com o
“ o Caolha” e o antigo Promotor de Justiça – Dr. Coriolano - que se
atrevera a pedir ao Juiz de Direito a
prisão de um capanga do Coronel que armara confusão na rua de baixo. Por eles e para nós a libertação parecia estar
próxima, principalmente quando vieram a ocupar a celas vizinhas alguns asseclas
do Coronel que perambulavam pela Vila a fazer arruaças e amedrontar aquela
gente pacata. Muitos deles, diga-se de passagem, nem chegaram a ser presos
foram mortos pelas ruas pelos invasores juntamente com parentes e amigos do
Chefão.
À tarde daquele mesmo dia penetraram na
cadeia, cumprindo ordem dos chefes invasores: o Juiz de Direito, Dr. Nicanor
Alves, o Vigário, Padre Bruno e um Oficial de Justiça Sílvio Frias, meu parente
distante. Nas mãos o magistrado trazia alvarás de soltura para todos aqueles,
cujos nomes ele ia preenchendo a mão, no papel escrito do Cartório e,
assinando, os entregava ao Sílvio para identificar o beneficiário.
Meus
parentes mais próximos tinham fugido para o Estado vizinho, para se livrar das
ameaças do Coronel. Estava ali praticamente sozinho e ignorado.
Saímos
sob escolta dos Justiceiros, fomos nos dirigindo para a rua, atravessando o grande portão de ferro da
cadeia. No coreto que hoje ainda lá está
no centro da praça em frente da Prefeitura, os invasores já tinham depositado,
envolto em um lençol ensangüentado, o corpo mutilado do velho Coronel. Além dos invasores – que estranhamente
comemoravam atirando para os céus, como
se o estampido das armas fora fogos de artifícios, pouca gente mais havia por
ali.
Nos
dispersamos ordenadamente. Eu me
dirigia para a Ladeira e pretendia ir para o Alto da Igreja onde morava. Do caminho, que depois veio a ser chamado Rua
do Dó – apelido de um dos filhos do Coronel que sobreviveu – veio o tropel de
capangas do chefe assassinado num último esforço para expulsar os invasores que
em desabalada carreira sumiam em direção a Miracema, deixando pó na estrada. No
entrevero final, o tiroteio recrudesceu e um tiro me atingiu em ricochete. Morri ali mesmo.
Tive
um lapso de memória daquilo que se seguiu no percurso até chegar aqui onde ora
estou. Como soe ser, daqui me foi dado
acompanhar até o final, a exumação do cadáver mutilado do velho chefe político e
seu enterro no mesmo Cemitério do Mato Dentro em que me jogaram numa cova rasa.
A
minha vida foi como a de qualquer um homem da nossa região e naquele
tempo. Se me pedirem um testemunho sobre
o acontecido que presencie há cem anos: eu lhes digo – agora sem qualquer
receio – que a tragédia se tornara inevitável.
O velho Coronel exagerara, enveredando-se pelo crime, submetendo a Vila
de Palma a um terror insuportável. Teria
feito algo bom para a velha cidade? Se fez, isto ficou eclipsado pela violência
e pelo crime.
A
verdade histórica não se suprime pela vontade dos que sobrevivem nem para
aqueles que, como eu, já alcançou o estágio diáfano em que me encontro.
_____________________________
VHCarmo.
Texto
ficcional escrito na oportunidade do centenário do assassinato do Coronel Firmo
de Araújo.
4 comentários:
Caro José Alberto,
Obrigado pelo conto, escrito no estilo do Brás Cubas; é bom ver um personagem de ficção participando de um episódio real da história da nossa cidade.
Que venham outros contos semelhantes.
Uma pergunta: quem é o Victor Hugo?
Grande abraço, Roldão
Olá Beto,
ficção ou não, está muito bom.Parabéns aí pelo conto!Eu também
quero saber quem é Vítor Hugo.
Abraço,Anna Barbosa
VICTOR HUGO é um querido palmense, filho do Sr, Oscar Avelino do Carmo, o Seu Oscar Dentista. É um meninão de oitenta e poucos anos, mora no rio de Janeiro e é um excelente escritor. Tem coisas lindas sobre a nossa Palma. E tem um blog escritosdovhc.blogspot.com
Oi Beto,
Que delícia de se ler estas memórias póstumas, estou saboreando agora o resto do blog do Machado de Palma.
Um abraço
Gilmar do Nêgo
Postar um comentário